o que couber aí é pequeno

fazia tempo que eu não me atrevia a terminar ler um livro. desejo de mãe entende mais de descanso do que metafísicas. escolhi este pela capa, porque vergonha eu não tenho de prestar atenção nas curvas que o papel faz, e no desenho das letras naquele aglomerado - nunca se sabe de um livro o que vem. só me dirigi ao caixa porque tinha um prefácio que valia o resto das folhas e já entendia não estar em prejuízo. culpa do lourenço mutarelli. ainda havia a chance de nunca ler aquelas páginas, e tudo bem pra mim, que vivo a colecionar vontades na estante.

e me enfiei a caminhar pelo cemitério com o senhor silva, a frequentar o feliz idade, a esperar inconformado a própria partida, sem repouso. eu que tenho essa empatia desgovernada por velhos, que me encho de ânimo ao lado da vó quando a encontro - que tomei os recados todos quando ela quase se foi, mas ficou. eu que quase me fui, a ponto de deixar ao meio o livro que me apeguei e lia devagarinho, por força maior e pouca vontade que acabasse. e passei o horror de perder um filho que me enchia a barriga de vida nova. a espera pelo obstetra é longa e tortuosa quando se tem barrigas cheias por todos os lados. ainda bem que alguém ali nas minhas mãos entendia de solidão. e saudade.

hoje olhei pro meu guri com novo espanto. tinha ali alguma coisa de desconhecida, e era eu mesma, a tentar olhar pra frente e estar sem saber das coisas todas. o luto traz um vazio que é uma espécie de força que expulsa as ilusões de dentro pra dar espaço pra gente mesmo, ou pra nada, que é a mesma coisa, se não for uma ofensa. não consigo achar que seja ruim. hoje olhei pro meu guri com os olhos limpos e aquilo me sorriu, encheu-me dessa coisa de amor. vi nele a espera interrompida de ficar sem a companhia que esperava pro natal e que já era presente, por antecipação de saber amar as criaturas. tomei coragem a ler os últimos capítulos e deixar também o senhor silva me tornar mais experiente em partidas.

e se foi com a mesma doçura, angustiada.

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sobre o máquina de fazer espanhóis, do valter hugo mãe.

stay with me

dessa vez foi planejado. tomou conta dela um desejo antecipado, raro em quem prefere não querer demais as coisas porque sabe que elas têm vontade própria.. e afinal, acredita mesmo que as importâncias chegam sem notícia, feito um dia bonito lá fora, olha só. dessa vez tentou controlar o caminho e veja, planejamento é um jogo de sorte vestido de bom conselheiro. a realidade tem mais capilares que a vida no papel: uma vereda a mais e ali está ela, exatamente onde deveria estar, não fosse a cegueira de desejar pra frente.

inventou memórias, a tonta. um presente de natal embrulhado em pampers premium. agora espera ter forças pra deixar ir aquela esperança armazenada no seu ventre, sem mais batimento que a realidade exige pra dizer que existe. dessa vez o desejo é inverso, quer prolongar a espera, essa espera vazia.

a dor pode anestesiar muitas coisas, mas não seda o tempo.

me dá um real?

hoje foi o dia de enterrar o cara. tive algumas chances de estar com ele (além das incontáveis noitadas de blues no stones, barfly e tal), e me renderam boas recordações desse cara profundo. tão profundo e sincero que era leve, veja só. minha gratidão ao renato. vivi os momentos mais intensos da minha vida ao som dos bêbados habilidosos e sei que muita gente por aí ta comigo nessa. 

esse vídeo é de 2008, em bonito, fran cavalheri fazendo 30 anos (segundo ele, a idade mais linda de uma mulher), estávamos na cia do nilsão, do fernandão e tb do marcos mattos. a fanzoca aqui lembrou um pedaço da música nova que ele tava mostrando pro fábio brum. 


um brinde. 



tabacaria

foi sair de casa e tropeçou nos cadarços da bota, qual espanto ao mirar os próprios pés e ver que o laço interrompido eram raízes, dessas que o tempo produz com água, sol e algumas vitaminas essenciais. o rastro era feito de farelos de azulejo branco e uns quantos tons de giz de cera (aos domingos a casa anda com a etiqueta pra fora). o alcance da saia estava próprio para aquele novo passo? pensou no aproveito da pausa no chão. e riu. era ela mesma noutra época e já tinha aberto quantas vezes aquele portão branco, agora rajado de ferrugem (tempo, água e ar).. nunca descobriu ao certo a cor que combina com seus olhos inquietos, quem diria decidir alguma forma pra cobrir as pernas. desfocou a vista do micro (si e a saia), juntou os fios cultivados e atravessou a fronteira rumo à rua. o vento levantou os seus cabelos e tirou o pó da superfície.

foi a pele que sentiu primeiro esse movimento familiar. o improviso de fora em sincronia com o tumulto de dentro. como se todo o conteúdo emergisse pra espiar o que há de novo. aquelas raízes dos pés cresceram imediatamente entranhando no vazio óbvio que se formou e foi assim que começou a caminhada.

– meu amor, volto logo – gritou atravessando a avenida. o menino olhava de dentro do portão.

you got to hold on..

tiro você pra dançar porque hoje o dia foi duro: teu choro me atirou cansaço, de cheio. aprenda que a dança dissolve certos desgastes, desses de ficar ruminando o que foi feito do dia, foco nos pés (os teus estão no ar). é engraçado como você procura a norah jones pela sala logo depois do play (nunca fui boa  com canções de ninar, achei que essa voz aveludada daria conta do teu sono reclamão). ficamos pela sala tomada de laranja pôr-do-sol, percorrendo o álbum até o fim.

é a primeira vez que adoece; meus braços estão firmes segurando esse peso, ainda leve.

hasta la victoria siempre

é a primeira dose e eu espero você voltar. é claro que deu uma desculpa para os parentes que já sabem das tuas coisas todas, mas a esta altura ainda baixa dos nossos acontecimentos acreditam na sua fala torta, me culpando pela noite interrompida. é sempre bom desviar a atenção do óbvio (alguns preferem os desvios, pra proteger a própria índole). já foram alguns goles e a sala vazia tem menos peso porque gira, e você deve estar agora nos amigos, difamando meus argumentos construídos com a lucidez de quem não pode dar um gole mais profundo neste copo em que eu mergulho enquanto você não chega. (já faz mais de um ano, porra).  daqui a algumas horas dos meus seios vai brotar um leite amargo, regado do uísque que me deu quando me achava assim: mágica.

aos poucos me lapida a sua mulher típica, com os teus desvios que não digo pra garantir consolo amigo, mas derrubo em cima de você com a minha palma descontrolada.

e você não aguenta nunca.

re leoni

sabe do chão pelos tropeços, e por isso começou a investigar: tem uma gana silenciosa pelo conhecimento e volta e meia e vira e está numa vereda (dessas dos livros que entranham na gente). beabá com cotovelo, já que a boca tem muniçao econômica (porque atira). às vezes é maria e de certo, o próprio lampião. bhanu. é de raio de uma luz sem pressa, porque o tempo é legenda do trajeto que o corpo faz. e se é dança esse percurso doudo, então estamos a cinquenta anos luz da escuridão.

a picture of you

vi com espanto: tem um bebê no meio da sala. pra quem está há três meses sem dormir direito, a memória falha. durou menos de um segundo. o suficiente pro corpo dar impulso a alguma adrenalina que comemora em cada pedaço de mim aquele guri, com os olhos fixos nos meus, deitado no meio da sala.

e que venho até remoçando, me pego cantando.

ela olhava pra ele com os olhos lotados: do lado de dentro, uma multidão cravada na íris, essa janela. olhava para os olhos de lá e enxergava alguma gente; até reconhecia uns rostos, mesmo de histórias contadas e uns desconfios. eles se perguntavam quantos eram ali na frente, e resolveram que quanto mais tinham, era cativo.

não fossem as marcas, seriam menos soluções.

- amor, prepara o nosso banho?


my favorite flavour was cherry red

a mãe ninava a filha cantando you can't always get what you want. ela dormia pra valer. cresceu querendo menos as coisas - menos que a média, entende? aprendeu a desejar o café sentindo o cheiro, e não abrindo os livros; aprendeu a dançar empurrando o sofá de casa, e não nas aulas em frente ao espelho; se jogou a fazer uma viagem e comprou só o primeiro ticket - o roteiro foi a estrada quem fez. admirava os sonhos que tinha, mas sabia do que se tratava os sonhos.
exibia cicatrizes com a ganância de uma tatuagem. a memória era como o que mais queria da vida (era um querer pra trás, entende?). o agora era presente. satisfeita, driblou os rolling stones - ainda assim, seus preferidos.  

mis tus sus nuestros vuestros sus rostros

tinha fome feito um buraco entre os nervos da cabeça e o assoalho. sua pélvis enganava o mundo fertilizando mais um exemplar de boas maneiras (porque os costumes, não podia garantir os melhores). fosse dizer ao filho não saber nada das coisas; dar um tapa no ombro e chorar de alegria dizendo: estamos nessa juntos.

pensou que a vocação de um vácuo de fome não é ser preenchido; é o corpo sublinhando o espaço vazio entre duas urgências: fosse a de nascer ou a de ser um criador. 

o amor é um buraco bem no meio. 

just for a second there I thought I saw something move

as cordas paradas não faziam barulho. mexia os olhos, com permissão. fossem as ideias mudarem de lugar e as coisas não seriam as mesmas: dariam impulsos aos dedos, que diriam dele os seus apegos com as notas todas, criando empatia com os pulsos alheios (que mexeriam os pés a seu favor).

sua grande cabeça em pé e acordada, arquitetando a próxima jogada.

nazira scaffi

vira, mira e atira: se faz presente em cada tique do relógio, esse gatilho. de gota em gota num submarino de palavras doces, porque a carcaça é de ferro, mas o coração do homem de lata é vivo - quem dera o de uma mulher pulsante (o ouro é um metal maleável, fique sabendo). vira, mira e atira: um abraço amoroso de quem olha pro outro e se faz presente, com laço no cabelo; com terra nos dedos; com pó de serra nos joelhos. sua estadia é sempre um viva e cheira a café feito na hora. um aconchego.

i'm going back to the start

ele chegava perto com a delicadeza das pontas do seu nariz - talvez por isso nao fizesse barulho. embaraçava seu olfato pelos cabelos dela, aqueles curtos, curvos e vividos. passava a noite feito a sombra que se mexe menos que a matriz. ela se movia no sobe e desce, vai e vem e reviravoltas em torno de si mesma -pra não sair do lugar, este ao lado do par entusiasmado. a sincronia do improviso que dançavam era crescente como o ânimo de estarem ali.

a escola de um tango é senão a sua própria pista.

letícia d´ávila

qual hora do dia se faz acordada quem disputa a tiros de salto alto um ticket pra entrar na madrugada? meio dia é lento, o escritório barulhento na falta de ritmo dos dedos digitando os versos burocráticos (a tolice dos processos se finge de vida a toda hora). os ossos enrijecem no ofício de quem quer dar o fora, assim que a grana caia pra dentro, a tomar ela por inteiro: a madrugada. adentra transferindo o peso do quadril ao pé esquerdo, porque a vida é bem melhor se for canhota, se for lá fora, se for agora.

a noite é um pedaço fértil do dia, já movia a anca a derramar nas coxas despidas do seu caminho mais uma dose de um ritmo blue.

she was a fast machine, she kept her motor clean

primeiro os copos. pra nao deixar cheiro, você sabe: os lábios pelas bordas, o líquido adentro, a sobra escorregando aquele buraco de vidro, de volta. entao os garfos e as colheres, fossem engolidos pelas bocas, por aquelas bocas famintas, fossem recuperados pelas maos ao deitá-los nos pratos, os próximos a serem lavados, com as obras do jantar, intacto.

fosse esperar mais uma vez com a casa limpa.

hand in my pocket

ganhou do pai uma televisao e logo hoje um presente. ela achou que ele tinha medo que se sentisse só e perdoou o presente com um kit sorriso, abraço e obrigada, pai - sinceramente. agora pelo menos vai se livrar um pouco do vício F5 das outras bobagens que substituíam as novelas. tinha alguma coisa errada ali e nao era um aparelho eletrônico.

just a little bit harder

é um buraco, é um buraco! descobriu nas veias de um transtorno, este lugar em que depositava as coisas mais lindas que via, que via. é um buraco. agora vai chamar de qualquer coisa aquilo nao pode perder, mas também nao pode ser amor, porque buraco é.

brandy alexander

do dedo fazia formas com a poeira do abajur, desenhava palavras a tonta, gostava das letras todas (mandava cartas anônimas à luz). gostava de acender o tal e perceber as letras sumindo com o tempo, cobertas com novas camadas dele, o tempo. eram mensagens significativas à luz, jurava com os pés reunidos no sofá, embaixo das almofadas. depois apagava, a luz - a poeira deixava lá, pegando superfície com o mês que vem.

tinha essa alergia a limpeza... The ever distant band begins to play

picnic

eram todos na sala pedindo conselhos para o roteiro de uma história ao biografado (e fodido) buda:

- e então, é final feliz ou a gente destrói tudo de uma vez?

ele levanta rumo à privada e reflete ao pé da cachoeira. sentencia:

- ah, isso aí tem que acabar bem, porra.

guarda os documentos e volta ao convívio, dizendo:

- afinal... I´m still here! 

franciella cavalheri

se tem compaixão o dedo que aponta é menos sofrida a dor do acusado. o dedo, no entanto, sofre a  explosão contida... mas dissolve o que vem de fora pela epiderme bege fosforescente. o que lá fora bate vira batida aqui dentro, de bumbo. "aqui" pra quem está perto, porque dentro está, dos braços imensos abraços a toda hora, a carinhosa (amansa as nossas carências, é fato). de bico em bico num retrato intenso de quem pari um mundo a cada inverno e descompensa o ciclo dos meses com o reclame de quem sente a falta de um filho. somos todos frutos dessa tua compaixão, nós de dentro. nós da dança, do embalo do dia que veio e não se espera parado (imóvel, sim, mas com motivo de quem tem muitas mangas pra guardá-los em porções). anda cercada dos teus filhos; a nossa estrada, as nossas mãos. dadas. 



you gotta move

ele não tira as mãos dos bolsos, falta um pouco de coragem. prometeu que um dia estenderia, mas era madrugada e qualquer dia que escolhesse estava a uma distância segura. fora a covardia, gosta da pompa que diz dele, assim com as mãos guardadas dos olhos dos outros. se soubessem os seus registros, sentiria um desconforto. teria que virar um outro e somar cicatrizes pra provar que estavam errados sobre o que entendiam das suas linhas tortas - se nem ele sabe, por que apostar na teoria de quem não importa? daria trabalho. fosse mesmo ficar com as mãos no envelope. dia desses, ele envia pelo correio; pra ela, aquela sem anel nos dedos.

que é pra sentir a textura dos seus seios.

it ain't me, babe, no no no

ele não sabia tirar o centro do mundo da porra do seu umbigo. a propósito dessa gravidade, colecionava satélites, é bem verdade. ele, porém - o seu umbigo - era um buraco infértil.

ela superou aquela órbita e brindou com ironia o fundo do poço. em um só gole, pra desobstruir a garganta.

um museu de grandes novidades

perfumava os dedos com uísque antes de puxar o teclado. que era pra anestesiar as palavras. dar a elas um hálito boêmio; um gole de desajuste; uma sílaba sem conserto; um desgaste de...

lonely stranger

elas andavam pela rua de ombros dados, o sereno fazia bem aos seus pulmões. as roupas cheiravam a cigarro, mas era por apego à fumaça - elas gostavam, afinal. a rua tinha o lado escuro e preferiam a transição, a meia luz. andavam pela madrugada em seus sapatos de festa, surrados de bar, de tanto dobrar com as piruetas, as bailarinas. marchavam feito um rockabilly ladeira abaixo - não olhavam pra trás, mas esperavam ver algumas coisas novamente, na próxima esquina. elas andavam de ombros dados e mãos no bolso, cada uma em sua cidade. acertavam o relógio por causa do fuso horário.

o primeiro passo era sempre com a esquerda, combinaram.

bailando bêbados na rua

ela fechou o cuturno como quem se prepara pra perder a guerra, usando aquela dignidade tola, saca? hoje é dia de espirrar o uísque depois da pirueta; transbordar as mágoas no refrão; admitir sua impotência com o amor; brindar a solidão.

nunca foi tão feliz. saca?

rise up this mornin'

ele tinha a boca fechada e as asas eretas, num vôo exibido. o público contemplava aquele bicho escondido da mira dos olhos - tinham que erguer o queixo e deixar o horizonte pra baixo, olhar o infinito sobre as suas cabeças. fossem agora lembrar do tucano, diriam das cores improváveis do seu bico comprido.

ela fechava os olhos e não esquecia do seu corpo negro, em alto relevo, efeito cicatriz. o luto preenchia as partes daquele voador e era tudo o que ela entendia.

fechava os olhos e não esquecia.